pato(não)lógico

numa quitinete sem janela e sem cama e sem sofá existe um corpo cansado em cima de um colchão. o corpo é um homem sentindo o cheiro de pão fresco impregnado na roupa que não ama se quer uma pessoa no mundo. boa noite confira as últimas notícias – os produtos que – mas carlos você prometeu que cuid – ligue agora o número é do – vai quebrando senhor toda maldição – se tu piensas que – os tiras estão atrás daquele carro rápido esconda-se ——— tela preta. a solidão não é seu banheiro com uma escova de dente nem muito menos seu cobertor de solteiro nem as duas últimas prateleiras da geladeira que nunca viram uma fruta vermelha. a solidão é o relógio de péssimo gosto em formato de pato que tem uma feição muito triste. esse homem que ninguém ama e que não ama ninguém tem um apreço grande por patos. nunca viu um. por perto da onde mora há uma vida inteira não tem um lago e nem lugar bonito para receber patos migrantes. nem o homem nem eu sabemos se patos migram. mas estamos os dois satisfeitos com uma certeza lúdica. não se sabe ao certo porque escolhe varrer a casa todos os dias religiosamente às dez da noite. gente que não acredita em santo tende a ficar muito obsessivo com a limpeza das coisas. é um achismo meu. para que pudéssemos saber com mais detalhes a relação do homem com a não sujeira de sua casa eu teria que entender um pouco mais de faxina. talvez eu não seja a melhor narradora para uma história sem fé em arruda e alecrim. quem não acredita em deus acredita em louças decoradas com patos que parecem cisnes. eu gostaria muito de escrever cisne de outra forma. cisnei soa mais português. esse homem quando comprou os pratos e pratinhos decorados de patos que parecem cisnes quase que matou o vendedor da loja. isso porque foi esse vendedor que disse que os patos parecem cisnes. eu descrevi dessa forma talvez porque queira irritar meu personagem. sou meio ruim em escrever ficção. custo muito. por isso essa coisa de cortar a história no meio com meus comentários. vejo perfeitamente a cena: o homem de um pouco mais de um metro e sessenta do outro lado do balcão do caixa do antiquário argumentando que esses são patos logo depois que o vendedor disse que bonito esses pratos de cisnes. voltamos ao colchão. dentro da roupa com cheiro de pão fresco mora um homem que encara a tela preta da televisão e se pergunta quando é que vai passar um filme de patos nesses canais estúpidos. é por essas e outras que estou escrevendo meu próprio filme pensou o homem um pensamento tão alto que fez voar o controle remoto que quebrou um patinho de cerâmica que ficava em cima da estante. me pergunto quem ainda está lendo. preciso achar logo o motivo pelo qual decidi contar a história do homem que chorou enquanto reposicionava com super cola os pedacinhos do pato-espatifado de cerâmica brutalmente atacado por um controle remoto que nada de remoto tinha e sim muito presencial. era tarde na noite quando decidiu dormir. às vezes as ideias para o filme aparecem através dos sonhos. nesses dias o homem acorda mais preocupado com patente do que patos. até agora a história era mais ou menos assim: uma moça que trabalha no central park em nova iorque cuidando da vida dos patos acaba se apaixonando por um moço que veio alimentar esses animais. tinha algo sobre o jeito que ele estendia a mão suave e grande até o bico faminto das aves nova iorquinas. a paixão dá-se quando a moça coloca um bilhete amarrado num pato no dia e na hora que o moço aparece. o que ela não espera é que -e esse é o clímax do longa- esse moço tem um problema patológico com relacionamentos. o nome do filme é patologia do amor. eu acho sensacional. pode ser que seja auto biográfico. talvez não. nem eu e nem o homem sabemos. numa quitinete sem janela e sem cama e sem sofá existe um corpo que finalmente descansa de suas obsessões da vida acordado. existe também uma narradora que ultimamente anda viciada na palavra patologia.

8 thoughts on “pato(não)lógico

  1. Nalü, eu já li quase tudo seu e isso parece uma daquelas obras-primas que a gente estuda na escola. Tô apaixonada

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  2. pato-que-me-pariu tudo que eu consigo verbalizar depois disso aí é um “quack”. espero que o homem do colchão e da quitinete entenda a profundidade apesar das poucas palavras.

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  3. você tem essa coisa de conseguir externar o que a mente faz e nos impulsiona a fazer quando umas imagens nada a ver começam a fazer sentido na cabeça. o cara em um antiquário discutindo sobre patos ou cisneis é o tipo de lembrança e/ou ilusão, criada ou não criada, que só tem muito a dizer porque intimamente nos faz um sentido que, as vezes, parece não ter sentido nenhum. mas a gente sabe que tem. ou não.

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  4. Por um momento quando li sobre o filme, achei que era sobre você. Bom. Talvez seja. E isso seja um spoiler. Fica aí o questionamento. Agora vou ter que ler todos os outros novamente pra ver se não tem nada nas entrelinhas. Obrigada pelos troços, nalü. 🤞🏻

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