eu que mando

recebi uma notificação no celular
dizendo que hoje eu estaria apática
porque em dois ou três dias vem aí
a minha menstruação

quando menstruei pela primeira vez
tinha acabado de fazer quinze anos
muito tarde, muito tarde
mas a ginecologista dizia que
eu tinha todos os sintomas
só não sangrava

tinha todos os sintomas
só não sangrava
tudo que acontecia com meu corpo
quando Ele precisava chorar: mudava
porque sempre dei tudo que tinha
mesmo sem saber que Ele existia

sempre tive dificuldade de chorar
no Teatro o diretor dizia que tudo bem
e que eu nunca seria mocinha mesmo
e que eu nunca seria bonita pra globo mesmo
e que eu nunca faria shakespeare mesmo
então não tinha tanto problema

não tinha tanto problema não saber sangrar
porque eu seria profissional do riso mesmo
porque eu seria sempre a outra no palco
porque eu teria as retiradas das palmas
porque eu roubaria a cena – não seria minha
eu teria que roubar, feito vampira
roubar o sangue

aos dezesseis eu menstruava
três ou quatro vezes ao ano
demorou muito até os dezenove
quando comecei a sangrar com
mais frequência mas nunca todo mês

já morava em outro país e ainda
não tinha deixado sair de mim
assim, tão natural, tão vermelha
o resultado dos sintomas

foi aos vinte quando casei
que pairou pelo ar o destino
intensificado, cheiroso, bonito
de cabelos brilhosos, dois corpos

dois sistemas de sintomas
tudo tão perto e do lado um do outro
que passei então a sangrar como
manda a natureza

isso não quer dizer jamais
que deixarei qualquer coisa
por menor que seja
fluir para fora do sintoma
e existir sem o controle frenético

Update: hoje em dia choro muito mais
e digo até que sou manteiga derretida
dependendo de qual performance
de mim for necessária

quando recebi a notificação
de que estaria apática hoje
ri profissionalmente
e virei o celular pra baixo
como quem diz
– na verdade quem manda sou eu

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