na feira da ladra às nove da manhã estendem-se contra a gravidade das ladeiras, louças, cabos, roupas feitas de gravatas e de histórias menos informais, sapatos sem passaporte e os discos dos cantores menos amados. muitos eus e muitos vocês e outras coisas que ninguém precisa ter, mas um dia teve. não compro nada porque não vejo sacolas e detesto carregar coisas durante o dia. é muito cedo para comprar um azulejo para minha cozinha imaginária. penso em me mudar logo, não porque preciso de um lar, pois disso desisti há poemas atrás, mas porque quero planejar paredes do zero. para poder olhar um prato chinês cafona e pensar que lindo ficaria em cima de uma toalha com estampa de galinhas. enquanto discuto com os sonhos e o horário, percebo que ninguém carrega sacolas. ouço muitas perguntas de quanto custa e aprendo que depende da língua que você expressa interesse. em inglês, uma caneca com mamilos vermelhos, que diz “mame mas não abuses” custa dois euros. para mim, que pergunto em brasileiro, custa “sei que é do brasil pelo jeito que fala”. pois não me mamarás e não me abusarás. não quis saber o preço, sorri e ignorei sua resposta do mesmo jeito que ignorou minha pergunta. essa cena nunca aconteceu, mas existiu o suficiente para que a imaginação me convencesse a não comprar nada. o problema de criar muitos filmes mentais é que facilmente me convenço da fantasia e tomo decisões sem qualquer resquício de realidade. por que será que ninguém compra nada nesta feira. não passa um ser humano ao meu lado segurando um presente. mas as mãos das meninas do tik tok estão em todos os cabides. mulheres muito bonitas e fumantes passeiam pela feira da ladra hoje. fiquei com inveja dos óculos escuros mas mais ainda dos cabelos que não entravam nos lábios com o vento que faz. parece que os meus fios sempre crescem para o lado oposto que corre o tempo. pedi em brasileiro para que duas francesas olhassem a bolsa que coloquei em cima da mesa que esperei à espreita por alguns minutos. conquistei um território português. não há table service, desse jeito foi que a portuguesa me contou que eu deveria entrar no café que exige, então, uma companhia. não gostei da falta de praticidade para pessoas sozinhas, mas esperamos, eu e eu mesma, pelo último ham & cheese na vitrine. pedi um café gelado, coisa que nunca faço, mas quis homenagear nova york, que é, no final das contas, minha única acompanhante. no próximo dia de feira voltarei mais confiante, pronta para mamar de algum cacareco que combine com a futura parede de casa.
Author: nalü
menina macarrão e outros pontos de cozimento
a menina de doze anos cobre a barriga com uma almofada. a barriga que, antes de estar por trás da almofada, fica roçando num algodão barato de uma blusa cor de rosa que aperta as mini-montanhas de macarrão. a sua frente estão as amigas movimentando as bocas aveludadas da saliva dos meninos da sexta série. a lurdinha nunca beijou ninguém, foi o que disse uma das meninas-salivadas. nessa hora, pela sala de tapete felpudo, voavam pedaços da cara de lurdinha, que ia se desfazendo no sofá enquanto implorava para se tornar a própria almofada. ao final das risadas, pouco importava se eram ou não amigas, se haveria ou não um beijo, a sexta série ou a blusa rosa. só o que existia de mais concreto era sua barriga de mini-montanhas de macarrão. lurdinha voltou andando para casa, pedindo para que os rigatonis fossem para o bumbum. um homem na fila do orelhão ficou encarando a lurdinha, que passava do outro lado da calçada falando sozinha, enquanto olhava para baixo. quando a menina percebeu o homem, ele fez um gesto que sugeria que ela olhasse para frente. lurdinha levantou o dedo de spaghetti mal educado e continuou a andar. chegou a casa se sentindo dura e crua. correu para o banho quente. se encheu de azeite esperando que as bolinhas tornassem seu corpo mais molinho, fácil de moldar. colocou a cabeça para cima como se conversasse com deus, mas ao invés disso, olhava para o chuveiro velho. quando se deu conta os pedidos eram para que o mesmo não explodisse nunca. se enrolou na toalha, e quando ao espelho se percebeu quadrada e estufada. como um ravioli. ensaiou que dizia em voz alta, mas só mexeu a boca: eu sou um ravioli. na mesa do jantar passou muito mais tempo olhando para o corpo da mãe do que comendo. a barriga era lisinha, como se lurdinha nunca tivesse morado ali. se nem peito tinha, pensava, como é que alimentou o bebê. era como se a mãe não pudesse ser a mãe porque não tinha provas. por isso não tinha como amá-la. o pai, calvo e barrigudo, era quem merecia seus gestos, afinal, era feio igual. no dia dos pais a lurdinha escreveu um bilhete que dizia “ficaremos sempre juntos, iguais a uma lasanha.” mal chegou o verão e lurdinha já recusou entrar para natação, porque sempre teve a impressão de que crescia mais ainda em água. fora que todo mundo olhava como sua barriga roubou tudo o que podia ter sido bunda. a barriga de lurdinha era tão má. extravagante. aparecida. tudo o que lurdinha não era. pensava que nunca ia beijar um menino da sexta série, pois a boca ficaria muito longe, a barriga ia colar primeiro. dura como rocha, a barriga seria sempre o maior obstáculo para chegar ao afeto. como a imaginação pesava muito menos, lurdinha foi deixando de ser corpo para ser apenas ideias. aos domingos usava a internet na lan house. todo domingo ela era júlia, magra como a mãe, linda, aveludada e salivada. como resposta para a pergunta “quem sou eu” ela dizia, com a certeza cibernética, “extremamente alérgica a macarrão.” lurdinha só deixou de ser júlia-aos-domingos quando completou quatorze anos. o tal do facebook chegou e o legal era colocar a própria face. ninguém fingia mais ser outra pessoa, bacana mesmo era colocar foto, nome, sobrenome e as fotos da viagem à angra dos reis. agora a moda era fingir ser uma versão mais legal de você mesmo. lurdinha tinha tantos fragmentos perdidos que já não sabia cozinhar seu próprio rosto. não sabia se era de tomate ou de queijo. não sabia se seu gosto acompanhava ervas ou alho. quando via seu reflexo, via as montanhas de macarrão, um cabelo de parafuso, pernas longas de spaghetti que nada combinavam com o tamanho da barriga e uma boca de massa que passou do ponto. a menina aos quatorze anos descobre que morre sozinha. afinal quem é que sabe medir a quantidade de uma menina macarrão?
canudos de plástico disponíveis mediante solicitação
numa delicatessen no bairro gramercy
na parte muito ao leste da ilha manhattan
um papel sulfite impresso com um grito
em arial black
plastic straws available upon request:
assim, com os dois pontos fechando o berro
como um personagem sádico invisível esperando ansiosamente pela sua humilhação:
pedir um canudo de plástico em alto e bom som nos quarenta do segundo tempo de dois mil e vinte um
o meliante que decide tomar uma bebida de canudo perde a carteirinha de nova iorquino uma cidade extremamente suja mas que pede que seus cidadãos
sejam conscientes com o mar,
o que é difícil de acreditar
afinal estamos todos aqui flutuando em
cima de uma ilha que afunda todos os dias
para além do desastre natural: lixos, muitos lixos, vários
eu aprendi que
o nova iorquino não só
não tem medo de morrer:
ele segue ciente e faz a sua parte para acelerar o processo
-inconscientemente-
porque é todo mundo cego pelo
relacionamento tóxicoh e abusivoh
que se tem com o CEP
é impossível odiar nova york sem amar
é impensável amar nova york sem odiar
em todos os lugares tem opção vegana
não existe um cachorro abandonado na rua
mas muita gente passa fome
morando em calçadas
o metrô te leva para qualquer
dos muitos cantos da cidade, até mergulha no rio se for preciso e
tem ônibus, tem embarcação e até teleférico
isso tudo com um preço, não o $2,75
você paga assim:
se sair de casa 7:01
você chega na hora certa
se sair de casa 7:03
chega 20 minutos atrasado
por uns meses vivi a maior bobeira
sob uma promessa de que não escreveria mais sobre essa cidade, a não ser que
fosse falar de existir nela
e não sobre ela existindo em mim
isso porque a primeira vez que
fui plagiada na vida
foi o primeiro texto que escrevi
sobre nova york
aos dezoito anos
eu publiquei pela primeira vez
como eram minhas primeiras percepções
era um texto tão meu, que para
o sucesso do plágio
foi necessário que mudassem
as partes tão intimas
para outras genéricas, por exemplo,
trocaram jonas brothers
por justin bieber
e aí, rapaz, essa me explodiu
uma fotógrafa, na época relevante
na comunidade brasileira
copiou e colou meu texto e foi
aplaudida, curtida, compartilhada
viralizada, com as minhas palavras
pois eu virei o bicho
como uma mãe que protege o filho
e acho que nunca fiz um barraco tão
grande na minha vida
naquele dia eu poderia facilmente
empurrar o navio no canal de suez
com as minhas próprias mãos
no não-pedido de desculpas ela disse
que tinha encontrado meu texto na internet
como “autor desconhecido” o que é a mentira Maior Que Ela Poderia Contar
já que o texto
literalmente terminava assim:
Nalü também é textão!
(pobre de mim aos dezoito anos
escrevendo desse jeito no falecido facebook)
hoje em dia eu super superei
logicamente não existe possibilidade
de não escrever sobre essa cidade
por isso desejo a ela que um dia
peça em alto e bom tom, em arial
black negrito, assim
no Meio do bairro gramercy por
um canudo de plástico
como saber a hora do tec e outras questões de ebulição elétrica
hoje quebrou a chaleira elétrica
que comprei porque vi uma igual
na casa dos primeiros chefes que
tive na vida
toda vez que eles desenroscavam
a água borbulhando para passar
o pior café que se pode beber
eu pensava
“em minha casa só entram grãos brasileiros”
eu quis tanto uma água esquentada
de tomada
a modernidade fervendo em segundos queria um declínio _____
na curva do meu gráfico
de desastre doméstico
queria uma possibilidade de explosão silenciosa e um botão azul
que des-fica azul e se auto-desliga
quando termina
há seis anos decidi que no meu próximo salário compraria uma chaleira elétrica
e quando aquela sexta feira chegou
lembro-me de procurar
com os olhos atentos
pela chaleira mais bonita
que o dinheiro poderia comprar
e por dezessete dólares estadunidenses
chegou empacotada uma chaleira branca com detalhes cinzas que acendem azul
mudou-se comigo para
todos os cantos e casas
que fugi, que preparei, que moldei, que fugi de novo, que compartilhei, que não limpei, que dedetizei, que desisti, que re-construi permaneceu em cima de todas os mármores de cozinha que esparramei gotas de café
tentei começar a tomar chá quente durante a quarentena, mas sou fã mesmo
é de chá gelado e por essas e outras que
a minha chaleira era para tudo menos
para chá: além da água do café, a chaleira servia a água do arroz e do macarrão
e dos dumplings e de qualquer outra coisa que precisasse de água em
estado de bolinhas
uma chaleira elétrica
se desliga sozinha
e eu por seis anos
não me acostumei com o botão
caindo num barulhinho – tec
e sempre que fazia tec eu pensava, tec, caramba, tec
o negócio faz tec! pronto e acabou. soube o ponto da ebulição e tec e ainda por cima o botão mexe, um tec
e ele cai, como se eu nunca tivesse apertado, tec, como se eu nunca tivesse feito o meu próprio tec de colocar para cima
a chaleira diz tec como quem diz
– é isso
como quem diz
– eu sei a hora de parar ela responde tec
como quem diz
– vambora que o que você demora
é o que o tempo leva
minha chaleira tinha a voz da adriana calcanhoto???
as pessoas dizem que
eu quando rio faço som de chaleira
e eu metida já logo penso que
essa pessoa não tem uma elétrica
porque a minha faz tec e eu certamente
não rio tec
(mas seria ótimo, imagina, rir com precisão
rir como quem anuncia
o fim correto do tempo
em que se ferve uma escolha)
a chaleira morreu da pior forma: perdeu a energia, queimou, queimou o tec, no tec, porque tudo que é tec é feito para uma hora deixar de ser, por dezessete dólares um tec que dura seis anos, é de bom tamanho, é até coisa muita
mas na minha cabeça eu e ela, duraríamos
o tempo que fosse, pelo tec que fosse, até eu também desenvolver uma tecnologia emocional para entender de pontos de ebulição
eu que já andava também meio morta e queimada e sem energia e que sempre encontrei nas coisas e nos objetos uma vida interessantíssima, talvez porque muito me faço disso também, como boa histérica no treino do surto eterno,
agora tenho que pensar como é que faz para descartar uma chaleira-sem-tec
para um mundo tec
essa não é uma carta de repúdio
à chaleira tradicional de ferro
que nunca sai de cima
daquela-uma-boca do fogão:
também somos muito amigas e de vez em quando fofocamos nossas questões,
nem muito menos é um problema geracional, porque nem sou inclusive a maior fã do tec
essa é uma carta de despedida às minhas muitas observações que só foram possíveis por causa dessa chaleira mágica e tecs outros
é uma carta tec que se despede de uma eu que há seis anos comprou seu primeiro eletrodoméstico
só comecei a pensar nisso tudo
quando fui checar pela janela
como é que estava a chaleira ali no lixo reciclável, pensei que
ela é muito despreparada para esse
tipo de ambiente, porque foi
sempre posicionada com tanto amor nos tantos lares que tive
provavelmente quando
eu terminar de escrever
e for sair de casa para começar um dia sem tec, vou resgatá-la
não para acumular, que não sou dessa
marca de pessoas, mas de repente
para um photoshoot – pois nada mais tec
e mais uma conversa – pois nada mais eu
meia molhada
perder a memória, não perder a memória, entrar no trem para ir embora, não entrar no trem, não ir embora, ir embora, cortar na metade por cima o frango para que fique mais fino e tenha amanhã, cortar na metade no meio o frango pra que fique mais grosso e seja mais comida pra um jantar só, guardar um segredo, que grita mais alto do que, não guardar um segredo, que existe em sussurros ao vento, e quando venta muita água, não sei o momento de abrir o guarda chuva na volta pra casa, eu penso que – são apenas alguns minutos molhada, não precisa porque é rapidinho, mas nunca é pouca água, nunca é, eu era pequena e me disseram que a chuva não molharia menos se eu corresse, porque eu corria, e que mesmo andando rápido a chuva era mesma, porque aí eu corria um pouco menos, e que a chuva, ela, não ligava pra pra mim, porque eu ficava olhando pra cima, nem pra minha velocidade ou pra minha pressa, ou pro meu cabelo, que eu tanto chorei por causa de, e que a chuva, ela era ingrata, eu era já grande, uns meses atrás, quando ouvi que a chuva entraria por todos os buracos da minha bota velha, porque não sabe, a chuva, o que é novo e o que é velho, o que quebra e o que não quebra, às vezes eu também sou assim, por isso não fico com raiva do aguaceiro, eu fico com raiva por não me entender chuva, por me cobrar todas as árvores/vidas que já derrubei em explosões desgovernadas, por isso quando a meia molha eu não penso – que merda a chuva, eu penso, que merda eu que não comprei novas botas, aí eu penso que ruim perder a memória, mas logo me rebato, porque afinal, acabei de lembrar