caminho pelos corredores do supermercado me esquivando do mundo
parece que estou no meio do caminho de alguém com mais vontade
de vida do que eu, com mais mundo no mundo que eu, empurrando um carrinho
com mais agilidade, enquanto eu sempre escolho o carrinho com as rodas emperradas
ou com algum defeito ou que parece mais pesado ou desgovernado
me sinto como aquelas estátuas que trabalhavam na calçada de copacabana quando eu tinha uns cinco anos e sempre pedia uma moedinha para acabar com a tortura dos artistas que não se mexiam embaixo da tinta dourada
exceto que eu, empacada no supermercado, não estou nem pintada e nem sujeita à moedas, embora minha conta bancária agradecesse qualquer sinal
de interesse -coisa que com certeza têm as pessoas que sabem exatamente o que buscam na estante que eu estou encarando há minutos que já não sei quantos-
não sei o caminho até nada que minha lista
precisa para ser riscada mesmo quando estive lá na semana passada e a antes dessa e a de antes também; mas nunca no mesmo horário; por isso nunca
as mesmas pessoas; nenhuma intimidade com o homem para qual pergunto – onde estão as bananinhas congeladas cortada em rodelas
e cobertas por chocolate amargo
um dia eu quero ser essa moça de legging branca passeando pelos corredores como se todos eles sussurrassem em seu ouvido onde cada coisa fica e como prepará-las ao chegar a casa e ainda por cima ouvindo música
eu quando ouço música no supermercado faço as piores escolhas e a ida dura ainda muito mais pois tudo que faço ouvindo música precisa ter um ritmo e obsessiva
fico pensando quantas batidas eu preciso para chegar até a sessão de frios
duvido que uma pessoa que usa legging branca tem algum problema de mania
é totalmente livre de mania o ser humano que escolhe usar branco em plena quarta feira
ou talvez -como diria o pensamento no fundo da minha nuca- sejam elas as pessoas mais obsessivas
eu julgo as compras das outras pessoas enquanto troco o lado do peso do corpo em cima dos calos do meus pés esperando ser atendida pelo caixa 7 (outra obsessão)
fico pensando duvido que você vai comer todas essas frutas, todo mundo sabe que vão apodrecer amanhã
fico pensando duvido que é você quem toma isso tudo de leite, todo mundo sabe que ninguém com a pele bonita desse jeito se entope de gordura de bicho: por favor pare de existir com essa pele e esse carrinho de leite na minha frente: estou em complexos: como toda pessoa normal em plena quarta feira: que é o maior dia dos complexos, todo mundo sabe
outro dia eu tentava descobrir qual que era o pedaço de frango mais barato na bandeja, pois aqui o problema é mais grave, não só sou de humanas, sou também imigrante e por isso adepta ao sentido universal, portanto não dá para pedir em kg tem que pedir em lb, e eu sei lá que porra é essa, e pensava como o estadunidense nunca viverá a experiência do pá, peito e acém na promoção anunciada no microfone por um homem com voz de radialista! que tristeza é um mercado em silêncio com pessoas bem comportadas e nenhum pão de sal!
toda vez eu prometo para meus pensamentos que vou prestar atenção e não esquecerei nada e comprarei o essencial e acabo na fila, nervosa
fazendo matemáticas de quanto vou gastar e prefiro ignorar a existência das coisas
que anotei que precisava, afinal se não leio não existe e aí tudo bem ter esquecido o ovo
-mas tudo bem porque é para isso que eu trabalho e eu trabalho muito- -e eu gosto de comer desse jeito- mas comer assim me faz mal- -eu deveria parar- -parece que não aprendo a crescer- -eu agora sou a minha própria criança implorando pelas besteiras do supermercado a própria adulta me mimando e colocando todos no carrinho-
ainda não aprendi a ir ao supermercado de forma plena e casual e talvez nunca aprenda pois não sei se é do feitio ou de algum traço meu de personalidade, a certeza de que vou entrar num lugar que sei o caminho, que sei as medidas, que sei o pós preparo, e sem mudar de ideia sairei com exatamente tudo aquilo que a minha eu do passado (a eu que fez a lista) desejou e decidiu que precisava, pois depois do encontro com o que eu escolho na falta do conhecido, na falta da bananinha em rodelas congeladas e cobertas de chocolate amargo, eu já não sei quem sou