vai ser difícil perdoar a tijuca

Flavinho nasceu em Resende, em 81, ainda no regime militar. Por sorte veio na cor certa e descolou um olho azul. As contingências de Flavinho não terminam por aí! Ele seria criado por uma família tradicional, como deve ser: a mãe em casa e o pai militar, casca grossa mesmo. Sempre protegidos pela paz e proteção de Jesus Cristo. Jesus branquinho do cabelo loiro, chiquérrimo. Nunca se importou em saber o que Jesus, supostamente, pregava. Tudo bem, porque Mamãe e Papai falavam muito sobre os valores da família na mesa de jantar. Flavinho aprendeu que até pra ganhar cereal radical, tinha que se esforçar o suficiente. Que na escola ou na rua, por mais bonitinho que o amiguinho fosse, só podia tocar se fosse pra bater. “Bora brincar de lutinha” dizia Little Flávio. Principalmente se o amiguinho parecesse perigoso. E perigoso é qualquer coisa que não coincida com o porta retrato da família no batizado. Ou o que ele vê no espelho. Fora isso é “vagabundo” dizia o Papai, ecoando em suas orelhas. Flavinho estudou porque mereceu, mas nem tanto, porque ouvia no sofá de casa que a escola não contava histórias direito. Sabedoria vinha de casa, que o pai disse. E contava com a mente prolífera de um paraquedista. Se estressa quando ouve professor chamar a ditadura de golpe, que pra ele não aconteceu, foi revolução. Afinal, Flavinho nunca viu ninguém da família sofrer. Aquele negócio: não combina com porta retrato, é vagabundo. Se é vagabundo, fez por merecer. Flavinho começou aula de tiro, porque pessoas como ele são alvo certo e tem de se defender. Chegava em casa pro jantar da Mamãe. Papai na sala gritando com a TV ou com o Rádio: mais uma ameaça comunista. Flavinho cresce vendo Chaves e brinca de ser o Kiko. Até que papai ficou possesso, porque homem não chora. Pediu que escolhesse outro personagem. Flavinho desiste da ficção e escolhe Brilhante Ustra.

O Flávio, agora, é muito preparado pra vida. Se relaciona só com os resultados de fraquejadas,l e identifica marginal de longe– atravessa a rua. Sabe mais do que os professores. Os enfrenta e diz mesmo o que pensa, pois foi lhe dado coragem e dignidade. Na paz do senhor, tem discernimento do certo e o errado. Amém. Foi por isso, apenas porque mereceu, que foi trabalhar com Papai. Que ele fundou empresa lucrativa e contratou todo mundo. Mudou a vida do porta retrato inteirinho. E mais um pouco. Com a graça do Senhor. Bendito é o fruto de Brasília que do vosso ventre nasceram acordos sigilosos. Papai ensinou que tem que ser macho e honesto. E honestidade não tem a ver com a verdade, tem a ver com saber intimidar. Cabra-homem grita. Por isso que Flavinho morre de orgulho de ter um piu-piu. Caralho este que é essencial no vocabulário, graças a Deus. Bem de vida, bem de pai e mãe, bem de cor e bem de igreja. Esse é o menino Flavinho! Que a maioria vença, sempre! A minoria que se curve diante dos feitos de quem manda! Direitos humanos pra humanos de direita! Flavinho tem um espaço no cérebro especial pras frases prontas. Enquanto cresce, percebe que Papai não é muito bem sucedido no que a profissão pede. Suas ideias não se destacam. Muita injustiça o que fazem com esse Papai. Mas, ele aprendeu que demônio boicota o bem. E sabe, que na verdade, são as pessoas que não entendem nada! Comunistas! Como não conseguem ver a instituição familiar que ele criou? Não seria ele, o Flavinho, e os outrinhos filhos, os modelos de uma criação do cidadão exemplar? No churrasco da família, cada um pega sua cerveja, acende seu cigarro e o papo sempre termina nos moleques que usam drogas. O tio coloca a prima no colo, enquanto reclama dos moleques que beijam outros moleques. A oratória aqui é gritaria e palavrão. Churrasco sem linguiça (seu irmão Carlinhos fica triste, mas regras são regras). O cheiro de cloro da piscina conquistada com muito suor, só não é mais forte do que o discurso de Papai sobre a falácia do protetor solar. Que é invenção de comunista. Pele boa é a deles. O tempo passa e o sujeito já é Big Flávio. E é no quintal de uma casa, onde dizem que as paredes são cor de laranja (embora muito patriotas), num condomínio na Barra da Tijuca, lar dos emergentes de sangue bom, que Papai os lembra de quando tinha um gol 1.0. Foram os anos difíceis da família. Isso tudo antes de ingressarem no próprio negócio. Hoje até franquia de chocolate têm. Na paz do Senhor, os churrascos seguem acontecendo. Não há necessidade de comparecer no trabalho tantas vezes. Recebem muito bem, agora com muito mais conforto, os amigos fardados. Um deles vira vizinho, porque se esforçou muito.

E como sofre, o Barra-da-Tijucano! Na opinião de Flávio, a violência no Rio de Janeiro tem que ser combatida por pessoas que sabem se portar. Pessoas como ele. De porte. Policiais e população armada, pra pôr um fim nos vagabundos. “Miliciano? Coisa nenhuma. Amigo da família. Boa gente, garanto.” Depois que Papai disse isso, não há quem discuta com Flavinho: a milícia deve ser legalizada. Ora, os caras só querem ajudar. Como alguém que reside na Barra da Tijuca pode querer o mal pro resto do Rio? “Isso só resolve quando a gente se juntar com a galera que tá no comando,” ele pensa. Onde preta, favelada e lésbica não tem vez. Nem voz. Nem vida. Até chegar aqui, Flávio foi criado como deveria. Não veio de fraquejada. Teve a iniciação em Jesus, molhado de piscina de plástico com roupa branca e tudo. Teve pai e mãe, DNA italiano e deles aprendeu valores-essenciais-patriotas. Cresceu ótimo porque nunca precisou ouvir “eu te amo.” Também não tomou vacina, e passa bem. Não teve mamata nem protetor solar. Hétero pra caramba. Afinal, a família o prefere morto a viadinho. Por isso precisa afirmar-se o tempo inteiro. O irmão caçula já anda por aí dizendo que beijou o condomínio todo. Fofo! Flavinho cresceu do jeitinho que todo mundo gosta. Do jeitinho brasileiro, deitado eternamente em berço esplêndido. Educação com base militar, no olho por olho. Arma em casa. Protegido. Sobre o Papai, a regra é clara: ame-o ou deixe-o. Tão nacionalista que USA a bandeira como uniforme. Um filho como manda o figurino. E você já sabe qual figurino. O início do final da história do menino Flávio, é sensacional. É o motivo deu ter escolhido contar. Não é que mesmo sob todas as circunstâncias e esforços e munições e pastores e chocolate, o menino Flavinho num cresceu e virou bandido, menina? É mole?

One thought on “vai ser difícil perdoar a tijuca

Leave a Reply

Fill in your details below or click an icon to log in:

WordPress.com Logo

You are commenting using your WordPress.com account. Log Out /  Change )

Facebook photo

You are commenting using your Facebook account. Log Out /  Change )

Connecting to %s