lembrei que teve
uma época que era proibido
escrever de caneta e por isso
eu cresci
dando muita importância
para tintas
coisa de adulto
seriedade
a primeira vez que escrevi
de bic em meu diário eu olhava
para página ao lado toda desenhada
de lápis e pensava que pareciam
duas pessoas diferentes
será que foi esse meu primeiro
episódio da dissociação
são perguntas
fazia as palavras como se fosse
segredo e rebeldia e ritual:
para escrever de caneta tinha que ser
na calada da noite sob a frecha de luz
da cortina roxa e depois da prática
(quase) religiosa vieram muitas crises
usar liquidpeiper era derrota maior
do que ralar o joelho na frente de
todo mundo no pátio da escola
eu só consegui me livrar da maldição
de eternidade da caneta depois que
entendi o poder das linhas que a gente traça
saí riscando tudo ou fazendo bolinha em cima
sempre setinhas que indicavam a dança das
coisas pela página e virou até parte do
meu jeito de expressar fisicamente
eu faço rasura até nas conversas
gesticulando e fazendo careta
a língua como borracha natural
e essa coisa da auto-correção
espontânea e muito rápida se
estendeu em vários dos meus varais da vida
um monte ainda estou deixando secar
só não lembro
mesmo com esforço
exatamente quando foi que
decidi que era bonito esse
erro à mostra
afinal fui uma criança
traumatizada esteticamente
e sempre muito perdida
visualmente
até hoje sou uma adulta assim
meio desengonçada estruturalmente
mas me sinto vencedora de todos
os obstáculos do mundo quando alguém
pergunta: quem tem uma caneta
e eu respondo eu tenho
eu tenho uma caneta