a menina de doze anos cobre a barriga com uma almofada. a barriga que, antes de estar por trás da almofada, fica roçando num algodão barato de uma blusa cor de rosa que aperta as mini-montanhas de macarrão. a sua frente estão as amigas movimentando as bocas aveludadas da saliva dos meninos da sexta série. a lurdinha nunca beijou ninguém, foi o que disse uma das meninas-salivadas. nessa hora, pela sala de tapete felpudo, voavam pedaços da cara de lurdinha, que ia se desfazendo no sofá enquanto implorava para se tornar a própria almofada. ao final das risadas, pouco importava se eram ou não amigas, se haveria ou não um beijo, a sexta série ou a blusa rosa. só o que existia de mais concreto era sua barriga de mini-montanhas de macarrão. lurdinha voltou andando para casa, pedindo para que os rigatonis fossem para o bumbum. um homem na fila do orelhão ficou encarando a lurdinha, que passava do outro lado da calçada falando sozinha, enquanto olhava para baixo. quando a menina percebeu o homem, ele fez um gesto que sugeria que ela olhasse para frente. lurdinha levantou o dedo de spaghetti mal educado e continuou a andar. chegou a casa se sentindo dura e crua. correu para o banho quente. se encheu de azeite esperando que as bolinhas tornassem seu corpo mais molinho, fácil de moldar. colocou a cabeça para cima como se conversasse com deus, mas ao invés disso, olhava para o chuveiro velho. quando se deu conta os pedidos eram para que o mesmo não explodisse nunca. se enrolou na toalha, e quando ao espelho se percebeu quadrada e estufada. como um ravioli. ensaiou que dizia em voz alta, mas só mexeu a boca: eu sou um ravioli. na mesa do jantar passou muito mais tempo olhando para o corpo da mãe do que comendo. a barriga era lisinha, como se lurdinha nunca tivesse morado ali. se nem peito tinha, pensava, como é que alimentou o bebê. era como se a mãe não pudesse ser a mãe porque não tinha provas. por isso não tinha como amá-la. o pai, calvo e barrigudo, era quem merecia seus gestos, afinal, era feio igual. no dia dos pais a lurdinha escreveu um bilhete que dizia “ficaremos sempre juntos, iguais a uma lasanha.” mal chegou o verão e lurdinha já recusou entrar para natação, porque sempre teve a impressão de que crescia mais ainda em água. fora que todo mundo olhava como sua barriga roubou tudo o que podia ter sido bunda. a barriga de lurdinha era tão má. extravagante. aparecida. tudo o que lurdinha não era. pensava que nunca ia beijar um menino da sexta série, pois a boca ficaria muito longe, a barriga ia colar primeiro. dura como rocha, a barriga seria sempre o maior obstáculo para chegar ao afeto. como a imaginação pesava muito menos, lurdinha foi deixando de ser corpo para ser apenas ideias. aos domingos usava a internet na lan house. todo domingo ela era júlia, magra como a mãe, linda, aveludada e salivada. como resposta para a pergunta “quem sou eu” ela dizia, com a certeza cibernética, “extremamente alérgica a macarrão.” lurdinha só deixou de ser júlia-aos-domingos quando completou quatorze anos. o tal do facebook chegou e o legal era colocar a própria face. ninguém fingia mais ser outra pessoa, bacana mesmo era colocar foto, nome, sobrenome e as fotos da viagem à angra dos reis. agora a moda era fingir ser uma versão mais legal de você mesmo. lurdinha tinha tantos fragmentos perdidos que já não sabia cozinhar seu próprio rosto. não sabia se era de tomate ou de queijo. não sabia se seu gosto acompanhava ervas ou alho. quando via seu reflexo, via as montanhas de macarrão, um cabelo de parafuso, pernas longas de spaghetti que nada combinavam com o tamanho da barriga e uma boca de massa que passou do ponto. a menina aos quatorze anos descobre que morre sozinha. afinal quem é que sabe medir a quantidade de uma menina macarrão?
🥺🥺🥺
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Você é sempre impecável escrevendo, Nalü. Senti saudade.
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Nostalgia, aperto no peito, lembrando da adolescência e desejando voltar no tempo e abraçar a Luiza de 12 anos e suas inseguranças.
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🥲
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Que saudade eu senti dos troços 🥺
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amei o conto, é engraçado porque não perdeu a essência dos poemas e ficou um conto com a sua marca
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troços que eu gosto de ler
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ai, nalü, vc é incrível. sentindo sentimentos vários. que bom que voltou❤️
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o complexo de édipo num conceito de massas e coisas outras relacionadas a dismorfia corporal eh todo um conceito de interpretação q pode ser só meu mas gosto mto dessa reflexão pessoal. abraços nalu!
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sentindo coisas várias 🥺 foi tão lindo e sensível esse texto e tocou numa ferida minha que eu nem lembrava que ainda estava aberta. Você é tão preciosa, Nalü ❤
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Senti até a Lurdinha lendo a sessão de conselhos amorosos e experiências de pegação da revista capricho
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Amei 🤧
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finalmente um troço pra ler e ignorar o troço que fica troçando a minha cabeça. obrigada pelo troço, Nalü ❤
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Obrigada nalü ❤
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Não sei o que senti mas muitos sentimentos foram sentidos enquanto lia. Obrigada Nalü ♡
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Não queria ter me identificado tanto… hehe mas amei
Espero que a menina macarrão venha aceitar que ser macarrão é ser bom de qualquer jeito ❤️ Obrigado pelo troço nalu ❤️
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tava com saudades desses troços. ❤️ obrigada por voltar
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Obrigada pelo troço Nalü, esse foi muito especial! No fim, espero que a Lurdinha saiba que não precisa morrer sozinha e que ninguém precisa medir a menina macarrão, nem ela. Que ela aproveite ela mesma e que não ligue mais pra medidas macarronais.
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Eu amei amei amei!! A sua escrita é tão gostosa, faz a gente chorar lendo duma menina que se imaginava macarrão😭❤
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muito lindo, faz a gente voltar a adolescência. vontade de abraçar a lurdinha 😞
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me senti um pouco lurdinha, sentimentos que são desconfortáveis mas que você faz ser uma experiência única e especial, sentimento de que não estamos sozinhas mesmo quando a gente se sente um pouco de cada macarrão. Senti falta, não pare nunca.
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Obrigada, Nalü 🙂
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Fico feliz por fazer parte do grupo de pessoas que consegue sentir esse texto
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