como saber a hora do tec e outras questões de ebulição elétrica

hoje quebrou a chaleira elétrica
que comprei porque vi uma igual
na casa dos primeiros chefes que
tive na vida
toda vez que eles desenroscavam
a água borbulhando para passar
o pior café que se pode beber
eu pensava
“em minha casa só entram grãos brasileiros”

eu quis tanto uma água esquentada
de tomada
a modernidade fervendo em segundos queria um declínio _____
na curva do meu gráfico
de desastre doméstico
queria uma possibilidade de explosão silenciosa e um botão azul
que des-fica azul e se auto-desliga
quando termina

há seis anos decidi que no meu próximo salário compraria uma chaleira elétrica
e quando aquela sexta feira chegou
lembro-me de procurar
com os olhos atentos
pela chaleira mais bonita
que o dinheiro poderia comprar
e por dezessete dólares estadunidenses
chegou empacotada uma chaleira branca com detalhes cinzas que acendem azul

mudou-se comigo para
todos os cantos e casas
que fugi, que preparei, que moldei, que fugi de novo, que compartilhei, que não limpei, que dedetizei, que desisti, que re-construi permaneceu em cima de todas os mármores de cozinha que esparramei gotas de café

tentei começar a tomar chá quente durante a quarentena, mas sou fã mesmo
é de chá gelado e por essas e outras que
a minha chaleira era para tudo menos
para chá: além da água do café, a chaleira servia a água do arroz e do macarrão
e dos dumplings e de qualquer outra coisa que precisasse de água em
estado de bolinhas

uma chaleira elétrica
se desliga sozinha
e eu por seis anos
não me acostumei com o botão
caindo num barulhinho – tec
e sempre que fazia tec eu pensava, tec, caramba, tec

o negócio faz tec! pronto e acabou. soube o ponto da ebulição e tec e ainda por cima o botão mexe, um tec
e ele cai, como se eu nunca tivesse apertado, tec, como se eu nunca tivesse feito o meu próprio tec de colocar para cima

a chaleira diz tec como quem diz
– é isso
como quem diz
– eu sei a hora de parar ela responde tec
como quem diz
– vambora que o que você demora
é o que o tempo leva
minha chaleira tinha a voz da adriana calcanhoto???

as pessoas dizem que
eu quando rio faço som de chaleira
e eu metida já logo penso que
essa pessoa não tem uma elétrica
porque a minha faz tec e eu certamente
não rio tec
(mas seria ótimo, imagina, rir com precisão
rir como quem anuncia
o fim correto do tempo
em que se ferve uma escolha)

a chaleira morreu da pior forma: perdeu a energia, queimou, queimou o tec, no tec, porque tudo que é tec é feito para uma hora deixar de ser, por dezessete dólares um tec que dura seis anos, é de bom tamanho, é até coisa muita

mas na minha cabeça eu e ela, duraríamos
o tempo que fosse, pelo tec que fosse, até eu também desenvolver uma tecnologia emocional para entender de pontos de ebulição

eu que já andava também meio morta e queimada e sem energia e que sempre encontrei nas coisas e nos objetos uma vida interessantíssima, talvez porque muito me faço disso também, como boa histérica no treino do surto eterno,
agora tenho que pensar como é que faz para descartar uma chaleira-sem-tec
para um mundo tec

essa não é uma carta de repúdio
à chaleira tradicional de ferro
que nunca sai de cima
daquela-uma-boca do fogão:
também somos muito amigas e de vez em quando fofocamos nossas questões,
nem muito menos é um problema geracional, porque nem sou inclusive a maior fã do tec

essa é uma carta de despedida às minhas muitas observações que só foram possíveis por causa dessa chaleira mágica e tecs outros
é uma carta tec que se despede de uma eu que há seis anos comprou seu primeiro eletrodoméstico

só comecei a pensar nisso tudo
quando fui checar pela janela
como é que estava a chaleira ali no lixo reciclável, pensei que
ela é muito despreparada para esse
tipo de ambiente, porque foi
sempre posicionada com tanto amor nos tantos lares que tive

provavelmente quando
eu terminar de escrever
e for sair de casa para começar um dia sem tec, vou resgatá-la
não para acumular, que não sou dessa
marca de pessoas, mas de repente
para um photoshoot – pois nada mais tec
e mais uma conversa – pois nada mais eu

4 thoughts on “como saber a hora do tec e outras questões de ebulição elétrica

  1. “rir como quem anuncia
    o fim correto do tempo
    em que se ferve uma escolha”
    Amei! Esse poema sobre uma chaleira me fez lembrar Manoel de Barros 🙂

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